HEDDA GABLER

de Henrik Ibsen



























Fotografias de Sérgio Lemos

Ficha Artística / Técnica
Encenação Bruno Bravo Tradução João Paulo Esteves da Silva Dramaturgia Miguel Castro Caldas Interpretação Anabela Brígida, Bruno Simões, David Almeida, Gonçalo Amorim, Inês Pereira, Sandra Faleiro, Raquel Dias Cenário Stephane Alberto Figurinos Ana Teresa Castelo Desenho de Luz Zé Manuel Rodrigues Assistente de Encenação Ricardo Neves-Neves Direcção de Produção Paula Fernandes Produção Primeiros Sintomas Co-Produção Galeria Zé dos Bois


Hedda Gabler já quase que não é nova mas ainda casa. Casar é entrar na vida como quem entra em casa. E a vida é tempo que se vai matando à janela, aos tiros com as pistolas do pai. O pai já morreu. No tempo do pai havia um jovem incorrigível que a vinha visitar. Dizem que se tornou num homem novo. Vai aparecer hoje com um livro que versa o futuro. Mas o futuro promissor é uma espécie de filho atirado à fogueira.

HEDDA GABLER continua a trilogia iniciada em Fevereiro de 2009 com o espectáculo LINDOS DIAS de Samuel Beckett, no NEGÓCIO, e em parceria com a ZDB. Esta trilogia põe em evidência três personagens femininos da dramaturgia universal e encerrará com a peça MENINA JÚLIA, também no NEGÓCIO em Setembro deste ano.


Classificação Etária: M/ 12 anos

Estreia e Temporada: 27 Mai. a 6 Jun. Qua > Sáb 21h30 NEGÓCIO/ZDB [Rua de O Século, n.º 9 – porta 5]

Reservas: Tel. 213 430 205 / E-mail reservas@zedosbois.org;

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Comme un casque guerrier d'impératrice enfant
Dont pour te figurer il tomberait des roses
Stéphane Mallarmé

Hedda Gabler. Não é costume ficar assim, horas esquecidas a olhar para a página sem conseguir escrever uma única linha. Normalmente escrevo qualquer coisa, facilmente, que depois deito fora também facilmente, ou guardo, não interessa, o que é certo é que isto de ficar assim especado não é costume. Agora, parece que a coisa desbloqueou; e foi no momento em que me vi reflectido aqui no ecrã que se apaga de vez em quando para poupar energia e se transforma num espelho e me achei parecido com o meu assunto, achei-me parecido com Hedda Gabler. Durante um instante era ela. Bloqueado a olhar o vazio tal e qual, e até mesmo o rosto, de repente, me pareceu o da Hedda. As barbas grisalhas e a calvície eram face jovem e cabelo louro e ralo de mulher. Será que a Hedda se sonhava a si mesma com as barbas do pai, do general? Não sei, vem-me agora a ideia de que este bloqueio não andará longe daquela má postura, dos maus lençóis em que a personagem está. Uma das saídas será a outra Hedda Gabler, a escrita, a peça de teatro que a heroína não pode ler, a que ela queimaria sem ler.
Teria sido mais fácil reflectir sobre «A Dama do Mar» ou «O Pato Selvagem», peças que Ibsen escreveu um pouco antes de «Hedda Gabler», que se prendem com os mesmos temas, obsessões, ou fulcros (o suicídio é um deles), mas que exibem uma eloquência poética e filosófica, por assim dizer, luxuriante, que está completamente ausente de «Hedda Gabler». As personagens destas peças anteriores são capazes de ler a sua situação existencial, lançando mão de símbolos, metáforas poderosas e expressivas, fecundas. Molhadas, mesmo. Por exemplo, o mar. O mar grandeza, desconhecido, infinito, criador e destruidor, que atrai com força irreprimível, este mar aparece dito na boca das personagens, e dá-lhes, dizendo-se, uma possibilidade de libertação das forças obscuras que as movem. Forçando talvez um tanto a nota, dir-se-á que em «A Dama do Mar» e em «O Pato Selvagem» as personagens se analisam reciprocamente, desfrutam, acreditam na magia das palavras molhadas. Comparativamente, Hedda Gabler é seca. Talvez esteja grávida, mas isso não a impede de ter a madre seca, de ser incapaz de conceber o filho. As flores, o sol, o inchar da barriga, a bênção da tia Jule, os cabelos fartos de Thea, etc… estimulam-lhe a antipatia, ou mesmo o ódio. Porquê? Ela própria não sabe, e nós ficamos igualmente embasbacados perante aquela rispidez e secura. Constatamos, apenas, não nos é dada a verdade por detrás daquilo. Talvez por isso «Hedda Gabler» seja mais convincente e, em certo nível, mais bela do que as peças anteriores. De uma beleza árida. O tom geral de secura transforma o espaço (a casa) num deserto e o espectador/leitor num camelo obrigado a procurar mais além sob o sol. Esta camelice, que há-de estar por detrás da presente escrita, já produziu alguns comentários célebres. Adorno, por ex.(Mínima Moralia, 2ª parte, 58) viu em Hedda Gabbler, essencialmente, uma crítica do casamento burguês, a subversão da bondade opressiva (medíocre) em nome da beleza libertadora: Hedda, a heroína, revolta-se, protesta até à morte, em nome de ideais elevados, beleza, nobreza, coragem, etc… ou seja, Adorno contentou-se com pouco; mas seria abusar da retórica dizer que viu simplesmente uma miragem. Porque a crítica do casamento burguês, está de facto na peça; o problema é que a crítica desta crítica também lá está, e a desta última, e por aí fora até que tenhamos que admitir que a peça se ri da crítica em geral, como o deserto se ri dos camelos, deixa-se atravessar, dominar, não. O texto de Adorno está cheio de meandros e subtilezas de pensamento merecedoras de respeito, e é muito injusto rejeitá-lo, assim, secamente, fosse em nome de alguma beleza. Mas parece-me que ele não quis ter em conta o nível shakespeariano atingido na peça de Ibsen. É que, segundo o conselho de Hamlet aos actores, a arte de representar deveria fornecer um espelho: «to hold, as 'twere, the mirror up to nature, to show virtue her own feature, scorn her own image, and the very age and body of the time his form and pressure». Um espelho como que posto frente à natureza, que mostrasse de que é que a virtude é feita (é possível traduzir feature por feitura) e mostrasse ao desprezo a sua própria imagem… Ora bem, o desprezo é, precisamente, uma das armas paradoxais de Hedda Gabler. Hedda despreza, entre outras coisas, os valores do marido, Tesman, e neste ponto é muito difícil não a imitarmos, Tesman aparece como um ridículo coleccionador de miudezas, insignificâncias. Fascinado pelos restos do passado «coisas de que ninguém faz a mais pequena ideia». Desprezível, portanto. Mas então e o fascínio que este desprezo exibe, melhor dizendo, trai, no próprio acto de desprezar? Porque será que a peça «Hedda Gabler» nos fascina tanto, sendo ela feita, muito cuidadosamente, de apenas miudezas domésticas, do mesquinho abortar de um casal burguês, de preocupações comuns como ganhar a vida, obter uma posição, procriar… etc. Há a heroína, claro, Hedda que se opõe a tudo aquilo e é isso que nos prende. Sim, mas Hedda casou com Tesman de livre vontade, qualidade que ela preza acima de tudo, escolheu-o entre muitíssimos pretendentes, porquê? O que é que em Tesman atrai Hedda? Mesmo antes de saber se é possível responder, podemos reparar que o próprio acto de desprezar revela uma adesão aos valores desprezados e encerra uma contradição radical. To show scorn his own image é fazer ver o quanto o desprezo é desprezível. O desprezo, se tal existe, implicaria a indiferença absoluta, qualquer manifestação de desprezo já é uma auto-negação, um começo de apreço. Armados desta constatação gramatical será que podemos arriscar ler no espelho que Ibsen nos põe à frente, ler sem esquecer a condição de camelo atravessando o deserto? Vou arriscar.
Hedda Gabler já não existe quando a peça começa, o nome seria agora Hedda Tesman. O nome da peça e da personagem é, pois, um resto do passado, e cai, enquanto objecto, sob a especialidade, para não dizer o talento, de Jorgen Tesman. O desprezo também, como vimos, já foi logicamente perdido no momento em que nasceu, já pouco ou nada dele resta no mundo dos fenómenos. Talvez que Hedda aposte em Tesman para a sua própria conservação enquanto resto do passado «o meu tempo estava a acabar» explica ela ao juiz Brack; talvez que o apreço que ela mostra por todas as restantes personagens, sob várias formas, que vão do apreço desprezo (Tesmans) ao apreço homicida (Lovborg) passando pelo apreço ódio ternura hipócrita (Elvsted) ou pelo apreço desprezo sedução hipócrita…(Brack) talvez que todos estes apreços complexos não sejam mais do que formas de luta, estratégias para recuperar o grande Desprezo original. Nada menos que tudo e nada mais que nada. «Um mundo que lhe está completamente vedado.» A relação com Lovborg parece ainda querer confortar o nosso romantismo, afinal ela apaixona-se pela única personagem talentosa da peça, não? Mas não, nada do eventual talento ou génio de historiador de Lovborg atrai Hedda, quanto a isso o único testemunho com que podemos contar, nós e ela, é o do especialista Tesman, nada nas falas de Lovborg é passível de nos remeter para ideias de génio ou inspiração. Não, aquilo que assumidamente interessa Hedda, em Lovborg, (interesse que nos deixa embasbacados, a nós e a ele, Lovborg) é o álcool, a bebedeira, o mundo desconhecido da ebriedade, do «dionisíaco», ecos do tal mundo sem preço, do tal grande Desprezo. Perto do fim, o bebé livro, concebido com outra mulher, será destruído como um inimigo em plena batalha, na guerra do desprezo ideal contra a aceitação da vida dos valores. É difícil não cair na tentação de invocar aqui o motivo, ciúme, e o seu corolário comovente, amor. Mas o amor costuma querer ocupar a totalidade do pensamento, segundo Camões, o amor é mesmo o próprio pensamento e seria, portanto, uma palavra a evitar quando se quer pensar, porque no fundo é ele que pensa… Enfim, Hedda vai travando uma luta desesperada em que a única satisfação que resta como sucedâneo do grande desprezo é o poder da vontade, a insubmissão, a liberdade. Compreende-se assim o aceitar das escaramuças de sedução com Brack, o sentir a liberdade no prazer de a pôr em perigo. Perder esta liberdade é perder a guerra, não resta senão «le suicide beau». Aplicação do código de honra militar, as tais barbas do general.
Mas porquê? O que é que leva Hedda para fora da vida? O que é que leva uma pessoa a não se contentar com o «entre», com algo, em vez de tudo ou nada. Nesta peça, Ibsen não arrisca mitos fundadores que saciem a nossa sede de respostas. Não sabemos praticamente nada do passado de Hedda, apenas alusões, as pistolas, o retrato do pai, o vestido preto, talvez de luto pela mãe, de quem nunca se fala, nada de certo. A peça dá-nos a provar as virtudes da incerteza e o aparelho shakespeariano em forma de espelho não permite a fabricação de heróis. O modelo do desejo triangular, enunciado por Brack, sem rodeios nem poesia, que se repete ao longo da peça como que em ilustração das teorias de René Girard, é um modelo descritivo do desejo, não chega para explicar o desespero do desejo. Hedda não desespera alcançar o desejado, parece que é o próprio desejar que lhe é insuportável, e a leva ao suicídio.
Há pouco, antes de começar a escrever, vi a Hedda Gabler a olhar as folhas secas na minha própria imagem reflectida. Neste momento começo a reconhecê-la em inúmeros poemas de «Les Fleurs du Mal», de Baudelaire, sobretudo na parte «Spleen e Ideal», termos que agora me aparecem quase sinónimos.
E por fim, última camelice, invoco a história de Narciso, um rapaz suicidário, uma flor e um estupefaciente. Narciso interessou Freud, seus contemporâneos e seus discípulos que vêm tentando apurar o conceito problemático e equívoco de «narcisismo» o qual, ainda hoje, continua a dar água pela barba à teoria freudiana das pulsões. É que o rapaz Narciso caracteriza-se, precisamente, por não ter pulsões, não ter desejos, por estar absolutamente em si mesmo; ou seja, por todo o contrário daquilo em que normalmente se pensa, quando se fala de narcisismo. Narciso não tem ego, nem, consequentemente, amor-próprio nem egoísmo. Desfruta de si, sem divisão entre o eu e o seu objecto. Este estado, aparentemente, invejável, terá suscitado a inveja dos deuses que o condenaram ao desejo. Quer dizer, malvados, tiraram-no de si próprio e puseram-no em frente dele mesmo. Seguiu-se crise de spleen entrecortada por ais de ideal e a história termina como a da Hedda Gabler.

João Paulo Esteves da Silva, músico, tradutor